terça-feira, 24 de abril de 2012

Haraway


A transformação tanto dos atributos de extensão quanto dos atributos espirituais do que nos acostumamos a chamar de humano pela interação com o que nos acostumamos a chamar de “não-humano”, seja este “não-humano” de ordem orgânica (animais) ou não-orgânica (máquinas), põe em cheque nossa noção comum de subjetividade, isto é, nossa noção comum de fonte de intencionalidade ou, em uma palavra, de humanidade.
Com o ciborgue, que é resultado, nos termos de Haraway, da “humanização da máquina” e da “maquinização do humano” – eu prefiro dizer, por julgá-lo mais exato, da organificação do inorgânico e da inorganificação do orgânico -, nossas regiões ontológicas tradicionais se confundem. É que a autoria transcendente, que antes parecíamos reputar apenas a certas entidades possíveis, agora é faculdade de todas as entidades possíveis.
A singularidade e a exclusividade do humano se dissolve – tudo pode ser humano e tudo pode não ser. Tudo pode ser vetor e fonte de intenção ou não ser. Isso nos força a deixar de pensar sujeitos como mônadas fixas e, para aproveitar nosso contato recente com a ontologia deleuziana,  mais como resultado de fluxos e intensidades espirituais e materiais (reais). O humano não é mais uma entidade segura – aliás, não existe mais entidade segura. O humano se revela agora como sendo não um ser (being), mas como um devir (becoming).
Podemos ilustrar esse movimento partindo de uma imagem retirada das Ideen II de Husserl com que me deparei enquanto fazia minhas leituras livres sobre pós-humanismo para a intervenção de hoje. Para Husserl, (1) coisas fazem parte do mundo material por estarem causalmente relacionadas com outras num contexto temporal e espacial; (2) o espírito faz pertence ao mundo humano por ser dotado de significado e intenção e (3) o corpo realiza a transição entre essas duas regiões ontológicas por ser tanto objeto material quanto órgão da intenção, isto é, por ser tanto capaz de tocar quanto passível de ser tocado. Em Haraway, o ciborgue revela que tudo é corpo – ou, pelo menos, que tudo pode ser corpo.
Isso tudo parece muito bonito e profundo, mas não posso deixar de levantar duas questões à autora. A primeira das quais eu temo dizer que seja a mais educada delas. Ela diz respeito a algo que ela disse em sua entrevista “Se nós nunca fomos humanos”. Ali, a autora negou que o houvesse ciborgue desde a origem da humanidade. O ciborgue é produto, ela diz,  de um processo iniciado no fim da segunda Guerra Mundial ou, na melhor das hipóteses, a partir do fim do séc. XIX. Qualquer tentativa de o reportar às origens da humanidade seria um erro. Mas como? Não imbricamos nossos corpos com os corpos de seres orgânicos e inorgânicos desde de sempre (ou desde há tanto tempo que sequer é possível datá-lo)? O que dizer da existência conjugada do cavalo e de seu cavaleiro, do objeto cortante e de seu manuseador costumeiro, novidades do capitalismo tardio? Esses encontros não agem consideravelmente sobre os esquemas de ação, sobre as formas de agir, sentir e pensar dos atores envolvidos? A habilidade da escrita não age sobre a memória, sobre o pensamento e sobre a expressão de quem a porte? Talvez seja verdade que essa conexão seja mais intensa contemporaneamente, mas ela me parece ser puramente uma questão de grau que não nos permite recusar o nome de ciborgue aos ciborgues menos radicais de outros tempos.
A segunda questão diz respeito à em que medida a tese da co-produção dos entes físicos e não-físicos e orgânicos e não-orgânicos é uma grande novidade. A obsessão de clássicos da cultura humanista como Montesquieu com, por exemplo, os efeitos do relevo sobre o indivíduo e a sociedade não é um eco disso? E, mais radicalmente até, as esconjuradas hipóteses de Lamark sobre em que medida  a atividade de cada homem se inscreveria em seu genoma não revelam uma mesma sensibilidade? Eu acho que a tese da agência das coisas é mais velha do que queremos admitir. It’s old wine in new bottles.

Por que o filósofo não respondeu à pergunta?

Porque ele a achou muito Espinosa.